- João, leva estes lençóis ao asilo. São para a cama do teu avô.
-Sim meu pai, respondeu o rapaz que fingiu corresponder ao pedido, mas escondeu os panos brancos debaixo da cama.
Quando disso se deu conta, o pai perguntou-lhe porque procedera assim. A resposta do João surpreendeu-o: – guardei-os para um dia pedir ao meu filho que lhos leve a si.
Pouco depois, o avô estava de volta a casa!
Histórias ingénuas como esta que tinham por objectivo transmitir valores sociais, eram as avós quem as contava. Hoje, raramente terão essa oportunidade e muitas já nem saberão fazê-lo. Compram-se por aí aos montes, em livros que muitos escritores, alguns de talento duvidoso, escrevem para ganhar dinheiro. Por vezes até fortunas enormes se conseguem quando, em vez das histórias simples de outrora que instruíam e faziam sonhar jovens, adormeciam crianças e passavam de geração em geração, se criam figuras cada vez mais estranhas e violentas que as perturbam e excitam.
Naquele tempo, não cuidar dos seus idosos era atitude incompatível com os bons preceitos familiares. A casa da família era a do idoso até ao fim dos seus dias. Cuidar dos mais velhos era dever dos que eles trouxeram ao mundo.
Hoje as coisas são diferentes. Por força da dureza da vida que assim o impõe, diz-se por aí. Por força de falsas necessidades que a ganância criou, digo eu.
A falta da solidariedade que novos objectivos colocaram no plano inferior das preocupações, destrói os laços de família. Os idosos tornaram-se inutilidades que perturbam carreiras; são despesa excessiva no orçamento familiar; são gastos que muitas futilidades disputam; ocupam espaços pelos quais os mais novos impacientemente esperam; são um fardo para quem deles tem de cuidar, um estorvo para aqueles de quem, durante muito tempo, eles cuidaram; são uma obrigação que os mais abastados podem cumprir pagando a quem, melhor ou pior, deles cuide e os menos abonados podem abandonar na rua, nos hospitais, seja lá onde for.
Um Relatório de Prevenção contra os Maus-Tratos a Idosos da OMS (Organização Mundial de Saúde) afirma que, em Portugal, quase 40 por cento de idosos são vítimas de abusos. A maioria sofre abusos psicológicos, quase um terço é vítima de extorsão e de violação de direitos, além de outros que são vítimas de negligência, de abusos sexuais e físicos. São factos preocupantes que, em mais um aspecto infeliz, colocam o nosso país nos lugares cimeiros das estatísticas europeias. Também não são poucos os que, sentindo-se sós e inúteis, desistem de viver.
São ditames de um tipo de vida em que a ambição sufoca o amor, o dinheiro pode comprar a ilusão do dever cumprido, a insensibilidade e o desespero inspiram barbaridades, a solidão faz apressar o fim.
Também as crianças sofrem as agruras de uma sociedade permanentemente atarefada e sem tempo para elas. Os filhos deixaram de ser fruto de um momento de amor ao qual nada se sobrepôs para se tornarem num empecilho que um desleixo causou e se pode descartar ou, pelo melhor, num evento fixado num ponto preciso de um plano de vida cuidadosamente definido em função de valores que outros objectivos ditaram. Decide-se se devem ou não nascer, quando nascem e quantos serão os filhos de quem lhes consente que nasçam. Podem atrapalhar a vida a quem cada vez menos pode descuidar-se na competição feroz em que se envolve e, tal como aos idosos acontece, são, eles também, vítimas de tenebrosos desmandos. Abandono, maus-tratos, inenarráveis abusos…
Nascem menos crianças nas sociedades que a competição controla que, por esta razão, se não conseguem renovar. É o que se passa em Portugal onde, desde 1982, se atingiu um índice de envelhecimento excessivo. Depois de termos sido mais de dez milhões, estima-se que no final deste século não sejamos mais de seis, o que é pouco mais do que éramos no início do século que passou. Uma óbvia recessão!
Seja pelo que for, a vida mudou. Mudou muito, por certo! Mas irá mudar ainda muito mais, não tanto por iniciativa do Homem como pelas consequências de decisões que já tomou e não consegue reverter.
Quando aquela história do João era contada, os idosos não passavam de uma bem pequena parcela da população total, mesmo da população jovem, e apenas se tornavam inúteis quando já não podiam trabalhar e pouco tempo mais viviam depois disso.
Agora, aumentada a longevidade e controlada a natalidade, os idosos são uma parte cada vez maior da população total e o seu número ultrapassa já, em Portugal e desde 2000, o que corresponde aos jovens! É uma alteração que, aos poucos, dá à “pirâmide etária” uma forma que cada vez mais se afasta de um triângulo para se assemelhar a uma “árvore” com o tronco cada vez mais longo.
A extrapolação que a evolução dos diversos “índices” demográficos permite não nos pode deixar sossegados porque a redução sucessiva da faixa etária ativa coloca em causa a suficiência dos meios indispensáveis à solidariedade social de que tanto os jovens como os idosos necessitam. Em consequência, uns e outros enfrentam problemas muito sérios, o que significa que toda a sociedade os enfrenta também.
Aos mais velhos será cada vez mais difícil assegurar a qualidade de vida que a sua contribuição no passado tornou devida, enquanto aos mais novos não será fácil garantir a formação e o trabalho que o seu direito ao futuro reclama.
O número de jovens sem emprego, sem perspectivas, cresce a cada dia. Os efeitos puderam ver-se nos gravíssimos distúrbios em França e, mais recentemente, na Inglaterra e levaram a já muito célebre “troika” a considerar escandaloso o número de jovens sem emprego em Portugal.
São sintomas doentios que denunciam a insistência irracional num modelo sócio-económico irrecuperavelmente falido porque não pode ser estável uma sociedade sem a solidariedade que não consegue gerar.
Rui de Carvalho
17 Julho 2011
Notas: 1. Consideram-se idosos os indivíduos com idade acima de 65 anos;
2. O índice de envelhecimento mede-se pelo número de idosos por cada 100 jovens (menos de 15 anos);
3. O índice de envelhecimento médio da Europa é idêntico ao de Portugal.
(Publicado no número de Setembro do Notícias de Manteigas)
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